terça-feira, 10 de junho de 2014

ÍMPETO

Naquele espaço rodeado de futuro vivia amargurada uma certa ancestral árvore - um abeto imponente, engrandecido pelo tempo e pelo brilho da sua roupagem. Vinham lenhadores, vinham engenheiros, vinham arquitectos, vinham operários... Nenhum ousava dar repouso eterno ao abeto, que naquele alto pedestal, com vista sobre a civilização, se mantinha incólume.

Mas sentia a solidão! Sentia a ausência dos seus semelhantes. Sentia o cheiro e o som do futuro à sua volta. Sabia o quanto aquela gente se perdia no tempo que era um futuro despido de horizontes. Na verdade, as memórias já pouco lhe diziam, não tendo com quem partilhá-las. Os dias arrastavam a sua existência. Empertigava-se quando vivalma o admirava, e a sua roupagem, de carnudos e finos cortes cónicos, perpassava o habitual brilho, como se ensaiasse um sorriso. Mas mal se afastavam os seus visitantes, as suas vestes voltavam a pender.

O funcionário camarário vinha ocasionalmente falar-lhe. Perdia-se em tempos, a borrifá-lo com um qualquer líquido, que entendia ser remédio para que o bicho não entrasse, envelhecendo ou adoentando as suas folhagens polposas, ou o sustento que era o seu tronco. Cortava-lhe as velhas peles e o abeto parecia ter novamente duzentos anos. Mas partia sem levar os segredos do abeto... não era qualquer um que sabia ouvir a linguagem de uma árvore... E o abeto já ansiava o fim dos seus dias, pois de tantos que eram os seus anos, já pouco havia que o pudesse surpreender.

Certo dia, perdido nos sonhos de um passado onde a terra da sua vida era ainda chão deserto de tempo porvir, o abeto ancestral sentiu pousar algo sobre os seus ramos algo leve e ligeiro.

- Quem vem lá?

Apanhada sem prevenção, uma andorinha, que há horas levantara voo, sentindo-se cansada, aproveitou a grandiosidade dos altos ramos do abeto para uma breve paragem, e ouvindo-o questionar a sua paragem, quase caiu do cimo dos galhos.

- Sou uma simples andorinha que procura um lugar para um breve sossego. Trago as asas pesadas do meu longo voo...
- E porque voas tu tanto, andorinha?
- Aproxima-se o tempo frio. Nós andorinhas damos indiscutível preferência a temperaturas amenas, que permitem o vislumbro do calor do astro rei. E tu quem és?

A andorinha revirava o pescoço, à procura do animal ou do homem que com ela dialogava...

- Sou o abeto, em cujos ramos repousas!
- Ah! Queira aceitar o meu pedido de desculpas, Senhor Abeto. Não pretendia, de modo algum, causar qualquer tipo de incómodo.
- Não incomodas, gentil Andorinha! Estava precisamente a argumentar comigo mesmo acerca das desvantagens de estar para aqui abandonado, nesta rotineira solidão. Agrada-me a tua visita!
- Ora, ainda bem, Senhor Abeto! Fico assim mais sossegada.
- E conta-me Andorinha! De onde vens?
- Venho de onde o calor se vai perdendo e saudando o tempo frio...
- E vais para onde, gentil Andorinha?
- Vou para as terras quentes do norte de África... a minha família já partiu. Avisei que os alcançaria assim que terminasse o meu repouso... Sabe senhor Abeto, já não sou a mesma andorinha de antigamente. Já voei por todo o lado, fui Pai, já sou avô e até bisavô, e se mais quer saber, sou já trisavô. Tenho memórias e histórias que justificam toda a minha existência, mas que pesam na agilidade das minhas asas... repouso para aguentar a longa viagem. 
- E a tua esposa?
- Já voou para as estrelas, Senhor Abeto... 
- Sinto muito, gentil Andorinha.
- Obrigada! E o Senhor Abeto, o que conta?
- Ora, não me chame Senhor! Faz-me sentir ainda mais velho do que eu me sinto, cá no cimo dos meus quinhentos e noventa e dois anos.

Riram os dois, entusiasmados com aquele interlúdio entre a permanência e a partida...

- ... O que conto?! - continuou o Abeto - Tenho tantas histórias, Amiga Andorinha! Tenho histórias de ar e do vento, e de amigos que com eles voaram... tenho histórias de água e bonitas donzelas... tenho histórias do fogo e das cinzas, e desse sentimento que é a infelicidade... tenho histórias da terra, de quando a terra era terra e não havia estas pedras sobre pedras... tenho histórias do hoje, tenho memórias do ontem, e tenho sonhos do amanhã... 
- Gostava de ouvir as suas histórias...
- Fique algumas horas, Amiga Andorinha... contá-las-ei... e escutá-la-ei, se me quiser contar as suas...
- Aproveitarei então para repousar, ouvindo-o, Amigo Abeto!



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