sábado, 20 de julho de 2013

CIRCUNSTÂNCIAS

- Já chegaste há muito tempo?

- Que vos parece?!

Não ergueu a cabeça, simulando uma fúria divertida, com a espera de duas horas. Tinha estado entretida com duas águas, um café e o portátil, embora a areia a convidasse à preguiça da tarde soalheira, adiada pelo atraso do casal.

Mas sabia o quanto aquela nova relação esperara o seu tempo. Compreendia aquela ansiedade traduzida no atraso dos dois…

- Estás zangada!

- Estou ocupada…

- Não vens para a praia?

- Esperem, que eu também esperei!

- Má!

Olhou para os dois, pronta a deixar os olhos chisparem uma fúria indizível. O olhar de carneirinhos estudado dos dois rendeu-a e os lábios rasgaram num sorriso vencido. Largaram os três a rir.

- Apetece-me bater-vos!

- Para quê?! Gasta as tuas forças em coisas mais produtivas…

- Assim como vocês?! Estão com um ar esgazeado…

- Também queres ficar com um ar esgazeado? Eu dou um jeitinho… A tua irmã não se deve importar…

Deu-lhe um encontrão.

- Estúpido!

- Eu viro a cara! Não vejo!

- És tão parva como ele.
   
- Somos nada! Só te queremos ver feliz…

- Deixem-me ir pagar. Torna-te útil e arruma-me o portátil.

Seguiu para o balcão do bar de praia. Enquanto aguardava, observava a animação da irmã com o seu melhor amigo. A atenção de ambos já não era só para ela. Tinham-se um ao outro… Que inveja! Pareciam encantados um com o outro, num daqueles impulsos imediatamente iniciais, em que o rosa choca com a realidade, em que o céu não toca a terra, em que nada há além do enamoramento, em que tudo se perde para a fantasia… Debruçado sobre a mesa, ele segurava a mão do seu objecto de paixão, de olhos fixos nos dela, cobrindo a mão de beijos lambuzadamente sensuais. Imaginou a sua própria mão presa na dele, a receber carícias... Fechou momentaneamente os olhos, para ao abri-los encontrar o olhar dele fixo no dela. Virou-se para o balcão, de novo furiosa com a sua indiscrição.


“Caramba! Não sei se ganhei um irmão ou se perdi uma irmã!”


quinta-feira, 18 de julho de 2013

TEMPO

O vento cortante fustigava-lhe o olhar. Permanecia imóvel, o corpo abandonado sobre a cadeira de baloiço disposta sobre o alpendre. As pernas entorpecidas, já não se deixavam salvar pela manta de patchwork, por onde, lentamente, num apego a memórias cruciantes, as mãos vazias deslizavam, no ímpeto do reencontro com a sua autora.

A neve acumulava, silenciosa, imolando a persistência dos escassos e delicados raios solares, que timidamente se esforçavam por rasgar o algodão espalhado pelas alturas. Ergueu a cabeça, sentindo o frio inalar, cortando-lhe a respiração e secando-lhe a garganta. Estancou, na mesma posição, durante largos segundos, apenas atento aos difusos sons que vinham até si pelas janelas fechadas da casa.

A filha e a nora preparavam a refeição da noite. Sentia o cheiro difuso do assado já colocado no forno, misturado com o odor de legumes. Sentia no leve arrepio que o percorria os sons dos netos, em amena brincadeira. A vida continuava…

A porta abriu, denunciando a presença de alguém, vinda ao exterior.

- Pai, está tanto frio! Posso ajudá-lo a ir para dentro?

A cabeça leve com o cansaço, desceu, empreendendo no intento de olhar a filha. Sorriu, a boca rasgada num anuir, sem contraposição. Ergueu-se, entorpecido. A filha avançou, intentando em prestar-lhe auxílio.

- Já o devia ter vindo buscar há mais tempo, Pai. Deus queira que não lhe tenhamos arranjado uma gripe…

A mão enrugada, perdida na solidão dos dias avançou na direcção do rosto da sua descendência. A filha acolheu o gesto, pousando a mão de aparência pura sobre o do pai.


- Deus não tem nada a ver, filha! A hora é agora! Vamos! Está fresco…


segunda-feira, 1 de julho de 2013

OS OLHOS DE LARA

“Hoje vou buscar forças ao fundo do inferno para recomeçar… A rua… Sozinha…”

Encaminhou-se para a porta da rua, parecendo desbravar uma floresta cerrada, num passo lento, puxado pelo consciente e atrasado pelo subconsciente indeciso. O ferrolho da fechadura deslizou num estrondo exacerbado, infligido pelo medo… Fechou a porta atrás de si, incerta.

O Sol intenso feriu-lhe o olhar desabituado. Na ausência da segurança sobre a sua opção, o chão parecia fugir, e desconcertada não vislumbrava o fim do percurso até à paragem de autocarro.

“Fiz mal! Não estou preparada!”

Estacou, tentando recuperar o fôlego, e reencontrar-se com a coragem que enveredara há momentos por outro caminho.

Um carro travou ruidosamente na estrada ao seu lado. Lara recuou, petrificada. Os sons multiplicavam-se, impondo-se à razão, provocando uma dor dilacerante nos membros paralisados. E a visão passada de corpos ensanguentados, falecidos, fragilmente encarcerados no interior do veículo perdido.

“Não! Não é nada disso. Já passou... Controla-te!”

- Sente-se bem!

Retomou o juízo momentaneamente perdido, sentindo o sangue afluir ao rosto.

- Nem por isso! Pode ajudar-me a chegar à paragem?

Gentilmente, o cavalheiro tomou-lhe o braço, auxiliando o seu caminhar indolente. Ajudou Lara a sentar-se no banco da paragem.

- Sente-se melhor?

- Um pouco, sim. Agradeço!

- Precisa que chame alguém?

- É muita amabilidade sua. Deixe estar. Já me recomponho.

******

No autocarro apinhado, perdeu a noção do mundo exterior. O confronto com aquela realidade tornou-se dulcificante. O corpo de Lara era arremessado de encontro aos restantes, numa luta pelo equilíbrio, mantendo os seus sentido em alerta, incapazes de se desviarem para a sua insanidade.

Chegou à paragem, pedindo licença, desprendendo-se do confronto físico que se reencontrava com o anímico. Lá fora… Demoraria a Cláudia?

O ar fresco nascido no fim de tarde permitiu que entrasse no recobro dos últimos cinquenta minutos. Lá estava a pastelaria, a escassos dez metros. Já teria chegado a Cláudia? Sentou-se na esplanada, depois do seu olhar percorrer os ocupantes das mesas. Nem sinal. O empregado aproximou-se, disparando um sorriso refrescante e quase cúmplice.

- Deseja alguma coisa?

- Um refresco de café, por favor. Com muito gelo e limão! – Devolveu o sorriso, o mais segura possível.

Os sons voltaram a enaltecer-se. Tentou distrair-se, detendo-se nas palavras escutadas.

- É pá! Tem mas é juízo! Bela porcaria de filme, meu!

De que filme falariam?

- Pedro, anda cá! A mamã zanga-se. Carlos, vai lá buscar o menino!

Pais e filhos, felizes. A vida, as crianças, o amor…

- Anda à roda amanhã! Olha a sorte grande!

- Dê-me uma cautela acabada em sete, por favor!

E a transacção deu-se, apoiada pelos comentários do companheiro da elegante senhora, de chapéu de abas.

- Lara, querida! Desculpa o atraso! Estás bem?

Conseguiu finalmente desembarcar em porto seguro. Abrigou-se no som das palavras da Cláudia. Cerrou os olhos por instantes.


- Estou! Agora estou! Senta-te! Estou mesmo a precisar de ti! 



sábado, 22 de junho de 2013

LEGADO

Cedo, ainda o sol mal erguido, o Pedro partia para os campos, para os seus pequenos pedaços de vida, onde a sua felicidade era inteira e simples.

Cinco da manhã e já ele e a Silvina – a mulher – se erguiam; todas as manhãs, sem falta. Porque era naquele amanhecer que se respirava o dia. Era naquela hora que a vida se entranhava, os cheiros se multiplicavam e as sensações os dividiam por todos os prazeres.

Hoje era diferente. A Milinha, a mais nova dos três filhos, ia com ele. O Tiago e o Diogo já o acompanhavam, o primeiro há quatro verões, o segundo há três. Mas a Milinha fazia naquele dia cinco anos. E estava na altura de ela conhecer o valor da terra.

Enquanto desfazia a barba de três dias – hoje era dia de festa e queria o rosto liso para poder beijar a menina dos seus olhos – pensava no seu legado, naquela paixão pela terra. Gostava que os filhos compreendessem... Não que quisesse que eles ficassem pelo quarto ano de escolaridade, e se deixassem ficar ali, longe de outros conhecimentos, mas a terra… Aquele cheiro, a vida, a vida a crescer, senti-la no amanhecer, no entardecer, no meio da chuva, abraçada pelo Sol de verão… Aquilo não podia ser contado, explicado... Tinham que ser sentido.

O Tiago e o Diogo já sabiam muita coisa. As melhores épocas para esta ou aquela sementeira, como abrir os regos, a quantidade de água para regar em cada época, e o Tiago até já sabia pôr o tractor a trabalhar. E se o petiz gostava daquilo! - sorriu. Mas agora era a vez da Milinha! A princesa, que dançava o dia todo, ou então fazia os chazinhos com bolachinhas, feitas por ela e com a ajuda da Silvana, para as suas bonecas.

Desceu as escadas a entalar a camisa nas calças de ganga desgastadas. Já conseguia ouvir as vozes da criançada, o Tiago e o Diogo a darem os parabéns à irmã, a Silvana a pedir aos filhos que se sentassem para o pequeno-almoço, e o Tiago novamente…

- Ena, Milinha! Hoje vais com a gente para os campos! Vais aprender as coisas do Pai.

E tornava a Milinha...

- Eu já sei! Mas queria levar as minhas bonecas para aprenderem também…

E logo o Diogo...

- Não sejas tola! Fazes cinco anos e já tens que saber que as bonecas não são de verdade!

- As minhas são!

A Silvana interveio, sabendo que não iria correr bem aquela teimosia…

- Vá! Acalmem-se lá, que o Pai deve estar a descer. Não quero zangas hoje!

Ouviu, do fundo das escadas que os filhos sossegavam: "Arranjei uma boa mãe para os meus filhos". Sorriu.

******

Seguiam-no, os dois mais velhos participando nas tarefas, mais que não fosse para a Milinha ver o quanto já percebiam da lavoura. A Milinha, segura pela mão do Pai, teimara em levar a Belinha - a boneca de pano que a acompanhava desde o berço – com as óbvias objecções dos irmãos. Parecia engolir cada palavra do Pai, cada gesto dos irmãos, cada raio de Sol que despontava sobre a terra.

- Olha aqui, Milinha! Estás a ver esta ervinha?

A criança anuiu com a cabecita, curiosa. Baixou-se, pedindo aos três filhos que se juntassem, ali mais perto dele.

- Cuidado para não pisarem! Sabem o que é isto? Batata! É verdade! Aqui debaixo desta terra está a crescer uma batata. E vão crescer muitas aqui à volta. É o milagre da vida. A vida que nos serve de alimento e nos deixa viver! Há que gostar da terra. Ela dá-nos quase, quase tudo! É preciso amá-la, ter com ela muita paciência, saber esperar, dar-lhe de beber, deixá-las alimentar-se dos raios do Sol. E ela retribui.

- O que é retribui, Pai?

- É dar, Milinha...





quarta-feira, 12 de junho de 2013

AVIVAH

Longe, muito longe, resistia um pinhal chamado Avivah. Era um pinhal com uma longa vida, onde a verdura e a frescura coabitavam, e onde a primavera parecia querer persistir o ano inteiro. Todos os pinheiros tinham histórias para contar. A mais importante, a da clandestinidade daquelas árvores, onde pé humano jamais estivera. E por isso resistiam às escassas intempéries, às estradas construídas no longínquo horizonte da orla, aos fogos de verão - de que outras florestas eram vítimas - e ao Natal.

Sementes, vindas de longe na boleia do vento, já lhes tinham contado histórias… Mas nenhum daqueles pinheiros queria saber das histórias terríficas. Ali reinava a paz, reinava a harmonia, reinava a partilha. A maior riqueza era aquela que todos eles conheciam, que dava voz à paz vivida e sentida na união e bem-estar.

Os pássaros voavam de todas as partes para poisar no topo dos pinheiros, que de tanta felicidade se mantinham fortes e protectores. Sem jamais terem sabido o que era a poluição, naquela floresta todos respiravam a pureza trazida dos ramos intactos. E também os pássaros tinham histórias para contar. Histórias que eram segredo, e que noutros lugares poderiam causar amargura.



No centro do pinhal vivia o Velho Pinheiro Sábio. Diego, com quase mil anos de existência, sabia de histórias como ninguém. Tinham-lhe sido trazidas pelo vento, pelas sementes, pelos pássaros, pelos lobos, pelas raposas, pelas lebres, pelos coelhos. Melhor que qualquer outro, o Diego conhecia as histórias do mundo, as histórias de evolução dos humanos, as histórias sem alma nem coração.

Era o Diego que casava os jovens casais de pinheiros uma vez atingida a idade de casar – que para os pinheiros é a partir dos cinquenta anos de vida; era o Diego que ensinava os pinheirinhos a história de Avivah, e sobre como o Amor e a compreensão entre todos lhes permitiam aquela lugar de paz na terra; era o Diego que distribuía conselhos, quando os mais novos se mostravam incertos. E também os animais e os seus representantes máximos – chefes dos lobos, das raposas, dos pássaros, das lebres, dos peixes do riacho – procuravam a sabedoria do Diego. Em tantos anos de vida, Diego compreendia o coração, compreendia os diferentes seres vivos, sabia como mantê-los unidos.

Os únicos seres vivos que não compreendia eram os humanos. As histórias que lhe contavam, e as imagens que retirava desses contos reais deixavam-no triste, incapaz de perceber, impossibilitado de digerir sentimentos como o ódio, o orgulho, a ganância, a ira. Também não compreendia o valor do dinheiro, nem dos metais, nem das pedras. Não era possível compreender como os tais conceitos se podiam sobrepor ao valor da vida. Como era possível para os humanos agirem tão contrariamente à sua vontade primordial...

E por isso tudo, Diego temia… temia que um dia toda a sua sabedoria e todos os seus conselhos não fossem suficientes para salvar Avivah e os seus habitantes do mundo à volta.

Numa dessas manhãs de conselhos, o Conrad, líder da matilha dos lobos, aproximou-se, esbaforido, trazendo notícias…

- Conrad, meu bom Amigo! O que te traz tão aflito?

- Diego, chegaram os humanos! – Tentou recuperar o fôlego. - Estão na orla de Avivah. Trazem monstros barulhentos, que cospem fumos. Trazem outros que cortam as árvores. Estão a cortar os Amigos Pinheiros! Estão a incendiar tudo! Os animais estão a fugir; mas e vocês Diego? O que fazemos?

Avivah ficou repentinamente agitada, como nunca antes. Diego ergueu os seus ramos, pronto a acalmar os corações de todos. Todos necessitavam de ouvir os seus saberes.

- Há uma hora para tudo, Queridos Amigos! De todas as histórias que tenho ouvido sobre os humanos, tirei uma única e sólida conclusão: há muito que o homem perdeu a capacidade de sentir com o coração… Onde há esse conceito que é dinheiro, não há o humanismo que buscam, sem saber.

O homem só vê com os olhos! Não sabe usar os sentidos! Não sabe ouvir o seu próprio coração, quanto menos os dos seus iguais, sejam eles de que espécie for. O que vê é o que quer, o que deseja, o que ambiciona. Intitulam-se de visionários.

Não é a beleza de uma floresta verde que seduz o humano; não é o cheiro da terra húmida que lhe acalma a alma; não é a chuva a correr-lhe pelo rosto que o faz sentir vivo; não é o sabor dos frutos que colhe que o presenteia com o desejo de continuar a colher frutos; não é o som dos pássaros que cantam, como todos estes meus Amigos, sobre os meus ramos, que o deliciam.

Os humanos vivem da velocidade, vivem das matérias sem vida, vivem do ontem, vivem da cobiça, e da inveja. Os humanos destróiem porque não sabem ver além de si... Não têm uma natureza igual à nossa.

Há muitos e muitos anos que eu temia este dia. Há muitos e muitos anos que eu temia a chegada dos humanos, Conrad. Um dia havíamos de deixar de ser a última floresta virgem.

Mas lembra-te do que te vou dizer. Temos o vento, temos o sol, temos a chuva; as nossas sementes serão transportadas, levadas para outras paragens. E o vento, o sol e a chuva saberão cuidar delas. Cresceremos de novo, apenas noutro lugar… Até um dia podermos voltar, nas asas do vento, no bico de um pássaro, nas asas de um pássaro… Porque a alma e o pensamento não morrem! Jamais!

Todos vós, animais, tendes pernas, tendes asas... Está na hora da vossa partida. Não fiquem para ver. Não deixem que os vossos corações percebam o que é a ambição descontrolada.

Construiremos novos lares, faremos parte de novas florestas, e seremos bem vindos.

Lembra-te Conrad: olha sempre com o coração. Os teus olhos enganam! O teu coração estará sempre certo. Quando tiveres dúvidas, por favor, lembra-te de mim. E não tenhas medo. Os humanos é que sabem o que é o medo… é uma produção só deles!

segunda-feira, 10 de junho de 2013

LUZ

As paredes de cimento esfriavam cada vez mais o ambiente, desprovido de mobiliário e acolhido apenas pelas singelas camas de ferro, oferecendo aconchego aos finíssimos colchões, cobertos por lençóis brancos e mantas cinzentas. Através das paredes de vidro via-se o corredor enegrecido pela escuridão do princípio de noite, tentando engolir as luzes difusas das celas.

O médico fazia a última ronda do dia, de chart na mão, tomando qualquer nota que definisse como necessária. Sem qualquer sentimento a evidenciar-se no semblante indiferente, parava momentaneamente junto de cada uma das celas, os óculos de hastes escuras e lentes redefinindo os olhos num tamanho diminuto, olhando através das paredes de vidro para os respectivos ocupantes. Alienados, nenhum dos dez parecia dar conta da sua presença, enquanto prostrados, imóveis, de olhos cerrados.

Terminou a diligência, regressou ao laboratório, passando o porta de grades de  ferro, onde o segurança o aguardava. Arrecadou o chart com as anotações e sentou-se frente ao computador, onde registou as observações. No gabinete dos seguranças, o barulho aumentava com o jogo de cartas que decorria. Alguém fizera batota, e as hostes embraveciam-se.

“Cambada de bárbaros que haviam de ter colocado aqui! Não sabem guardar silêncio. A ver se acabo isto depressa que não estou para apanhar com estes imbecis.”

Uma hora depois terminava o relatório. Retirou os óculos e colocou-os na bolsa da pasta. Despiu a bata branca, tirou o anorak do cabide, vestindo-o apressadamente e de pasta na mão saiu desejando – contrariado – uma boa noite aos ocupantes do gabinete, e dando uma última olhadela para o corredor enegrecido, onde tudo estava em silêncio.

“De onde terão vindo aqueles miúdos? Uma pessoa tem que estudar e registar sem saber do que se trata... E se têm pais, devem estar loucos da vida… Poderes?! Eu não vejo nada além de dez crianças petrificadas, apáticas, com amostras de sangue perfeitamente normais e saudáveis, e a tensão arterial elevada, o que se justifica, atendendo...”

Sentou-se no Fiat quinhentos. Estava frio. O pensamento desviou-se para uma caneca de cacau quente e para a colecção de selos. Não lhe apetecia jantar. Tinha comido uma sandwich às seis e meia da tarde. Mas o cacau e os selos… Isso sim! Ia saber-lhe bem!

******

No gabinete, os seguranças estavam mais calmos, tendo dado continuidade ao jogo de cartas, os quatro absortos pela sede de vencer.

O corredor manifestava um aumento de luminosidade, embora ténue. Mas o silêncio mantinha-se, indiferente aos sons no exterior. Colados agora aos vidros, dez rostos pequenos permaneciam imóveis, cada um confinado à sua cela.

Dez crianças aparentemente normais... Ninguém no laboratório percebia aquele confinamento imposto. As devidas entidades haviam recrutado o pessoal mínimo para ali trabalhar e zelar pelo segredo. Estavam todos impedidos de falar acerca do que ali se passava, sob juramento, e desconhecendo o poder daquelas entidades empregadoras, bem como o das crianças detidas.

Os dez rostos mantinham-se imóveis. Crianças entre os cinco e os onze anos... Estranho era aquele estado de latência inexplicável. Na verdade, a única preocupação dos cientistas e médicos daquelas instalações.

Lentamente, a luz do corredor aumentava enquanto dez pares de olhos se iluminavam impondo luz sobre o espaço deserto. Vinte feixes de luz reproduziam-se sobre as paredes de cimento. As portas das celas, trancadas, deslizaram, promovendo a saída aos seus ocupantes. Sem pressas encaminharam-se para o exterior. Pararam, estáticos, a comunicar uns com os outros, em silêncio.

Juntos, caminharam na direcção do gabinete dos seguranças. O portão de grades de ferro abriu, dando-lhes passagem. Passaram as janelas de vidro, olhos iluminados. Os seguranças mantiveram-se entregues ao jogo, mentes controladas, incapazes de perceber a passagem dos miúdos.

Seria com certeza difícil, dez crianças passarem despercebidas na rua, num início de noite, todas vestidos de calças e camisolas de fato de treino cinzentos, de cateteres presos às mãos esquerdas e olhos iluminados. Não havia o que pudesse produzir uma ideia contrária, podendo-se vislumbrar aquela estranha visão. Mas ali perto, naquele descampado, não havia ninguém. Caminharam, muito juntos, em direcção à civilização.

******

As ruas estavam ainda bem movimentadas, na rapidez da hora. Atravessaram a estrada, imobilizando o trânsito que num instante sem recordação, sem qualquer manifestação de embate, estancou, permitindo a passagem. E chegados à outra margem, o trânsito retomou naturalmente o seu curso.

Continuaram, compenetrados, conscientes do seu destino, invisíveis ao olhar dos restantes, que sem perceberem sequer a presença dos dez pares de luzes brancas azuladas, intensas, se desviavam para permitir a passagem.

À entrada do hospital, as palmeiras, acometidas de uma pestilência fatal, retomaram um ar viçoso e salutar.... Avançaram, num passo homogéneo, em direcção à entrada.

O hospital, em época de gripe, apresentava-se apinhado de doentes que tossiam e espirravam, mais os seus acompanhantes, inicialmente atravancando a passagem. Todos aqueles corpos agitados pela espera, cederam o chão, sem darem conta.

Percorreram os corredores, com um destino traçado. Na enfermaria dos doentes terminais, uma mulher jazia, inerte, ligada a uma meia dúzia de tubos e máquinas, imitindo um ténue som constante, que denunciava a presença de uma vida pendente. Aproximaram-se os dez, formando um circulo, de mãos unidas e olhos elevados. A luz emitida pelos olhos uniu-se no ar, ao centro, produzindo um feixe que se infiltrou por todo o corpo da mulher. O corpo inerte iluminou-se, estremeceu, balançando, como se estivesse entregue a uma convulsão silenciosa. E repentinamente parou, novamente prostrada sobre a cama. Os dez afastaram-se, retomando o caminho de regresso à saída do hospital.

******

No laboratório, o médico terminava a análise das novas amostras de sangue, deliberando acerca dos resultados, iguais a todos os anteriores. Nada! Na bancada ao lado, o neurólogo registava os resultados dos exames neurológicos. Nada! Uma cognição inquestionável, um raciocínio lógico apurado em todos os dez casos. Nada a apurar: destreza exímia, rapidez nos reflexos e nas respostas. 

Uma hora por dia, ao longo das últimas quatro semanas, as dez crianças ganhavam vida, dando resposta a todos os exercícios impostos, a todas as necessidades de investigação. Depois, novamente aquele estado de latência, oscilando entre a posição sentada e a deitada. Mas sempre, em todos os momentos do total das vinte e quatro horas, o silêncio; a ausência de voz, de palavras.

O que manteria aquelas crianças naquele estado? E porque razões as teriam trazido para ali, e não para um hospital?

A verdade é que não havia sinais de doença, vírus ou bactéria. Absolutamente nada!

- Ouviram as notícias?

O psiquiatra regressava da hora de almoço, provido de três cafés. O clínico e o neurólogo ergueram os olhos, expectantes quanto ao resultado daquela intervenção, acenando negativamente.

- Antes de ontem, no hospital, assim sem mais nem menos, a mulher, a doente terminal, a do carcinoma uterino, deixou repentinamente de manifestar qualquer sintoma. Depois de lhe realizarem os exames necessários, não encontraram absolutamente nada! Nada! Era terminal! Tem alta amanhã. E ainda há quem não acredite em milagres! Pode ser que agora nos possa ajudar...

O clínico ergueu-se da sua cadeira, avançando em direcção à porta.

- Não queres o café?

- Já bebo!


Caminhou na direcção das celas. Uma a uma observou, na esperança de ver alguma resposta. Como, não sabia. Mas algo lhe dizia que elas eram a fonte daquela cura: demasiada pureza; demasiada paz; demasiada inocência; demasiados segredos... As crianças mantinham-se inertes, prostradas sobre as camas, inexplicavelmente.


PORQUÊ?

Por vezes surgem-me ideias para histórias. Tenho esta necessidade de escrever...

Mas nem sempre lhes dou continuidade. Então surgem pequenas histórias. Não sei se algum dia lhes darei novamente voz...

Por isso resolvi criar este novo espaço: HISTÓRIAS, porque são apenas isso. Pequenas histórias.