sábado, 20 de julho de 2013

CIRCUNSTÂNCIAS

- Já chegaste há muito tempo?

- Que vos parece?!

Não ergueu a cabeça, simulando uma fúria divertida, com a espera de duas horas. Tinha estado entretida com duas águas, um café e o portátil, embora a areia a convidasse à preguiça da tarde soalheira, adiada pelo atraso do casal.

Mas sabia o quanto aquela nova relação esperara o seu tempo. Compreendia aquela ansiedade traduzida no atraso dos dois…

- Estás zangada!

- Estou ocupada…

- Não vens para a praia?

- Esperem, que eu também esperei!

- Má!

Olhou para os dois, pronta a deixar os olhos chisparem uma fúria indizível. O olhar de carneirinhos estudado dos dois rendeu-a e os lábios rasgaram num sorriso vencido. Largaram os três a rir.

- Apetece-me bater-vos!

- Para quê?! Gasta as tuas forças em coisas mais produtivas…

- Assim como vocês?! Estão com um ar esgazeado…

- Também queres ficar com um ar esgazeado? Eu dou um jeitinho… A tua irmã não se deve importar…

Deu-lhe um encontrão.

- Estúpido!

- Eu viro a cara! Não vejo!

- És tão parva como ele.
   
- Somos nada! Só te queremos ver feliz…

- Deixem-me ir pagar. Torna-te útil e arruma-me o portátil.

Seguiu para o balcão do bar de praia. Enquanto aguardava, observava a animação da irmã com o seu melhor amigo. A atenção de ambos já não era só para ela. Tinham-se um ao outro… Que inveja! Pareciam encantados um com o outro, num daqueles impulsos imediatamente iniciais, em que o rosa choca com a realidade, em que o céu não toca a terra, em que nada há além do enamoramento, em que tudo se perde para a fantasia… Debruçado sobre a mesa, ele segurava a mão do seu objecto de paixão, de olhos fixos nos dela, cobrindo a mão de beijos lambuzadamente sensuais. Imaginou a sua própria mão presa na dele, a receber carícias... Fechou momentaneamente os olhos, para ao abri-los encontrar o olhar dele fixo no dela. Virou-se para o balcão, de novo furiosa com a sua indiscrição.


“Caramba! Não sei se ganhei um irmão ou se perdi uma irmã!”


quinta-feira, 18 de julho de 2013

TEMPO

O vento cortante fustigava-lhe o olhar. Permanecia imóvel, o corpo abandonado sobre a cadeira de baloiço disposta sobre o alpendre. As pernas entorpecidas, já não se deixavam salvar pela manta de patchwork, por onde, lentamente, num apego a memórias cruciantes, as mãos vazias deslizavam, no ímpeto do reencontro com a sua autora.

A neve acumulava, silenciosa, imolando a persistência dos escassos e delicados raios solares, que timidamente se esforçavam por rasgar o algodão espalhado pelas alturas. Ergueu a cabeça, sentindo o frio inalar, cortando-lhe a respiração e secando-lhe a garganta. Estancou, na mesma posição, durante largos segundos, apenas atento aos difusos sons que vinham até si pelas janelas fechadas da casa.

A filha e a nora preparavam a refeição da noite. Sentia o cheiro difuso do assado já colocado no forno, misturado com o odor de legumes. Sentia no leve arrepio que o percorria os sons dos netos, em amena brincadeira. A vida continuava…

A porta abriu, denunciando a presença de alguém, vinda ao exterior.

- Pai, está tanto frio! Posso ajudá-lo a ir para dentro?

A cabeça leve com o cansaço, desceu, empreendendo no intento de olhar a filha. Sorriu, a boca rasgada num anuir, sem contraposição. Ergueu-se, entorpecido. A filha avançou, intentando em prestar-lhe auxílio.

- Já o devia ter vindo buscar há mais tempo, Pai. Deus queira que não lhe tenhamos arranjado uma gripe…

A mão enrugada, perdida na solidão dos dias avançou na direcção do rosto da sua descendência. A filha acolheu o gesto, pousando a mão de aparência pura sobre o do pai.


- Deus não tem nada a ver, filha! A hora é agora! Vamos! Está fresco…


segunda-feira, 1 de julho de 2013

OS OLHOS DE LARA

“Hoje vou buscar forças ao fundo do inferno para recomeçar… A rua… Sozinha…”

Encaminhou-se para a porta da rua, parecendo desbravar uma floresta cerrada, num passo lento, puxado pelo consciente e atrasado pelo subconsciente indeciso. O ferrolho da fechadura deslizou num estrondo exacerbado, infligido pelo medo… Fechou a porta atrás de si, incerta.

O Sol intenso feriu-lhe o olhar desabituado. Na ausência da segurança sobre a sua opção, o chão parecia fugir, e desconcertada não vislumbrava o fim do percurso até à paragem de autocarro.

“Fiz mal! Não estou preparada!”

Estacou, tentando recuperar o fôlego, e reencontrar-se com a coragem que enveredara há momentos por outro caminho.

Um carro travou ruidosamente na estrada ao seu lado. Lara recuou, petrificada. Os sons multiplicavam-se, impondo-se à razão, provocando uma dor dilacerante nos membros paralisados. E a visão passada de corpos ensanguentados, falecidos, fragilmente encarcerados no interior do veículo perdido.

“Não! Não é nada disso. Já passou... Controla-te!”

- Sente-se bem!

Retomou o juízo momentaneamente perdido, sentindo o sangue afluir ao rosto.

- Nem por isso! Pode ajudar-me a chegar à paragem?

Gentilmente, o cavalheiro tomou-lhe o braço, auxiliando o seu caminhar indolente. Ajudou Lara a sentar-se no banco da paragem.

- Sente-se melhor?

- Um pouco, sim. Agradeço!

- Precisa que chame alguém?

- É muita amabilidade sua. Deixe estar. Já me recomponho.

******

No autocarro apinhado, perdeu a noção do mundo exterior. O confronto com aquela realidade tornou-se dulcificante. O corpo de Lara era arremessado de encontro aos restantes, numa luta pelo equilíbrio, mantendo os seus sentido em alerta, incapazes de se desviarem para a sua insanidade.

Chegou à paragem, pedindo licença, desprendendo-se do confronto físico que se reencontrava com o anímico. Lá fora… Demoraria a Cláudia?

O ar fresco nascido no fim de tarde permitiu que entrasse no recobro dos últimos cinquenta minutos. Lá estava a pastelaria, a escassos dez metros. Já teria chegado a Cláudia? Sentou-se na esplanada, depois do seu olhar percorrer os ocupantes das mesas. Nem sinal. O empregado aproximou-se, disparando um sorriso refrescante e quase cúmplice.

- Deseja alguma coisa?

- Um refresco de café, por favor. Com muito gelo e limão! – Devolveu o sorriso, o mais segura possível.

Os sons voltaram a enaltecer-se. Tentou distrair-se, detendo-se nas palavras escutadas.

- É pá! Tem mas é juízo! Bela porcaria de filme, meu!

De que filme falariam?

- Pedro, anda cá! A mamã zanga-se. Carlos, vai lá buscar o menino!

Pais e filhos, felizes. A vida, as crianças, o amor…

- Anda à roda amanhã! Olha a sorte grande!

- Dê-me uma cautela acabada em sete, por favor!

E a transacção deu-se, apoiada pelos comentários do companheiro da elegante senhora, de chapéu de abas.

- Lara, querida! Desculpa o atraso! Estás bem?

Conseguiu finalmente desembarcar em porto seguro. Abrigou-se no som das palavras da Cláudia. Cerrou os olhos por instantes.


- Estou! Agora estou! Senta-te! Estou mesmo a precisar de ti!